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Das Viagens

Viajar devia de ser como o sonho: uma constante da vida. Aqui trago relatos apoiados numa visão muito pessoal do prazer de cirandar por aí.

Viajar devia de ser como o sonho: uma constante da vida. Aqui trago relatos apoiados numa visão muito pessoal do prazer de cirandar por aí.

Das Viagens

05
Abr17

SEM... CABEÇA - PARTE SEGUNDA

Eduardo Gomes

A manhã do dia 22 seria dedicada à monumentalidade, onde avultava o extraordinário Convento de Jesus, fundado em 1463. O viageiro paga o que lhe exigem e entra na área que foi a portaria do antigo mosteiro dominicano. Olha para as grades, imagina locutórios e parlatórios seleccionados pelo grau de afinidade às monjas. Mais além uma roda servia intentos comerciais e desapegos de filhos não desejados, juízos muitas vezes situados bem para além dos entendimentos do coração. Dois avisos para que não vá ao engano o visitante: a roda não é a original, a que ali se apresenta é oriunda do convento de S. João Evangelista das Carmelitas de Aveiro; a portaria significava o fim da vida civil, sob pena de excomunhão. Pontos nos “is”, prossigamos em direcção ao coro baixo.

 

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– Oh! – Como evitar o êxtase diante do imponente túmulo da princesa Santa Joana?

Não cabe aqui a descrição da defunta que ali jaz, princesa de Portugal por direito próprio, sucessora real até ao nascimento do mais extraordinário rei que reinou em terra lusitana. Para Aveiro foi por sua vontade, contra a opinião de pai e irmão, Afonso V e João II, respectivamente. Morreu a 12 de Maio de 1490, e foi enterrada, também a seu pedido, em campa rasa. Beatificada em 1693, o monarca Pedro II mandou erigir-lhe mausoléu a condizer com o estatuto real.

 

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O projecto assenta num minucioso trabalho de embutidos, de mármores policromos, também aplicados no pavimento e paredes. Um homem dá voltas, observa-lhe as perspectivas, deita-se no chão para confirmar que os querubins não acarretam com o peso da arca, antes só o fingem: malandretes.

A capela do autor da Regra que rege a Ordem Dominicana, é dedicada, obviamente, a Santo Agostinho. Por lá se encontra o túmulo do sétimo duque de Aveiro, Gabriel de Lencastre, o qual deve ter achado por bem vir fazer companhia à tia.

 

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A surpresa seguinta vai para a riqueza barroca expressa na talha dourada da Igreja de Jesus. Ver para crer. Parece ter sido aberta ao culto por volta de 1465, deixando subentender que o arco gótico que se situa por cima do púlpito pertence ao templo primitivo. O altar fronteiro à porta acolhe a imagem de Santa Joana.

 

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Muitas capelas se vão sucedendo até que o viageiro se depara, no coro alto, com um estranho crucifixo gótico, que se afirma ter presidido à procissão de inauguração do mosteiro. À memória vem-lhe a capa da Bíblia oferecida à Sé de Oviedo por Fruela II, muito provavelmente durante o primeiro quartel do século X. Terá este sido testemunha dos votos de Santa Joana. O calvário barroco que lhe fica por detrás, foi adaptado, posteriormente, como envolvente da imagem. Fica intrigado o viageiro, jamais a figura de Cristo lhe pareceu tão terrena: cabelo curto, pernas tortas, olhar vazio. Quem és tu? Deus ou Homem?

 

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Vai o viageiro até à sala de lavor, cuja importância histórica se inicia a partir do momento em que Santa Joana adoeceu. O espaço é preenchido por pinturas que narram a vida da princesa desde que ali chegou até que morreu.

 

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Ali por perto, encontra-se a cruz a que ela se devotou ao pressentir o fim. Imperdível.

 

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A última referência vai, como é óbvio, para a pintura da menina adolescente, ex-libris do museu, atribuída à oficina de Nuno Gonçalves. A princesa é retratada em trajo de corte, conforme ao seu estatuto real. Trata-se duma obra datada do século XV, tão real a face quanto a tristeza que dela emana por saber que o quadro se destinava a encontrar marido a quem dele não carecia.

O viageiro está cansado: passa pela inusitada Barca de Nossa Senhora da Boa Morte e pelo túmulo de D. João de Albuquerque. Outro dia virá, e mais dirá para além do que agora deixa.

 

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Aproxima-se a hora do almoço, contudo, ainda havia visitas a fazer. A Sé Catedral está ali por perto, dê-se lá um saltinho. O templo representa o contraponto ao convento. Este, ainda que dominicano na essência, era dedicado ao género masculino.

 

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A saliência vai para o cruzeiro de S. Domingos no exterior, o qual é uma cópia imperfeita do bem mais belo crucifixo gótico-manuelino que se encontra no interior do templo. Raios me partam, se este não é primo do

bizarro que vi no convento.

Estava na hora de visitar um outro templo, este dedicado à gastronomia. O viageiro é teimoso e conservador no que toca ao paladar: volta ao Adriano para comer o afamado bacalhau. Embora honesto, não o impressionou tanto quanto a vitela do dia anterior.

Continuemos a digressão pelo património religioso.

 

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A igreja da Misericórdia é visitada à pressa. Sofre de anormal síndrome: é que a majestade do convento inibe o pazer a tudo o mais em redor. Sim, sim, interessantes a talha do altar, os azulejos, o coro e, dizem, que não a detectou o visitante, uma imagem do Ecce Homo em pau-cetim.

 

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A meio da tarde, o viageiro achou que bastava de igrejas e conventos. Era tempo se absorver a cidade: o edifício da câmara; o centro, onde se juntam vários braços da ria; os moliceiros ávidos de turistas; as cores das casas; as pontes; as gentes.

 

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Abra-se aqui um parêntesis para ligar a cidade ao movimento estudantil. Por alguma razão, imperceptível ao forasteiro, os estudantes não partiram para casa com a chegada das férias: quiçá tenham melhor vida ali, em grupo; porventura se insiram em algum projecto de dinamização da bela urbe. Não interessa. Estão por ali, brincam, tiram fotografias com os transeuntes, as quais, logo de seguida, colocam nas redes sociais. Fantástico, diz quem adora crianças e jovens positivos.

 

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Prossegue a visita quem traz toda a calma do mundo. As embarcações, slogans sexualmente provocantes, sucedem-se. Aqui é: “ Anda, Manel, abre-me lá o rego!”; ali: “Quem me dera ser cão!”; mais além: “Jasus!, que bela solha”. Dê-se de desconto a pontuação, que é obra do escriba que detesta erros de português, e temos o espírito aveirense em pura ironia.

 

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Aveiro está cada vez mais bonita. Cosmopolita como poucas, fica a dever aos estudantes universitários o movimento pós pôr-do-sol que a caracteriza. A vida nocturna despreza o frio, enche restaurantes, bares e ruas, proporcionando um ambiente de confraternização e segurança, bem ao contrário da maioria das urbes recolhidas em casa, como se cativos fôssemos todos, deixando as ruas aos noctívagos de toda a espécie. 

 

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Volta um homem a jantar no Adriano. A vitela difere da do dia anterior. As vacas são como os homens: todos iguais, todos diferentes. Até o Manel se torna simpático, deseja-nos boa viagem: quem diria?

 

(Continua)

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