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Das Viagens

Viajar devia de ser como o sonho: uma constante da vida. Aqui trago relatos apoiados numa visão muito pessoal do prazer de cirandar por aí.

Viajar devia de ser como o sonho: uma constante da vida. Aqui trago relatos apoiados numa visão muito pessoal do prazer de cirandar por aí.

Das Viagens

06
Abr17

SEM... CABEÇA - PARTE TERCEIRA

Eduardo Gomes

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O dia 23 começa envolto em azáfama. É que a dona do Sweet Garden Apartment possui uma visão deslocada de direitos e deveres. Se à chegada me obrigou a esperar pelas três e cinco, apesar de saber que ainda não haviam batido as treze e já à porta estacionara, à partida exige o apartamento antes das onze. Manias. Está nervosa a senhora, que não teve a gentileza de se dar a conhecer. Envia mensagem atrás de mensagem pelo telemóvel: quer saber a minha opinião. Não lha dou de borla. Fique a sabê-la por aqui, se quiser. O espaço fica algo afastado do centro de Aveiro, o que, se pessoalmente, não me incomoda por aí além, percebe-se, pelas reacções dos internautas, que não corresponde às expectativas. Porém, o pior, é que a zona está toda dedicada a aluguer para turista. O rés-do-chão e as paredes de “papel” em nada ajudam ao sono reparador. Há gente pela rua em amena e menos amena cavaqueira até ás tantas, e, não nos esqueçamos, estamos em Dezembro. Imagine-se o que sucederá nos meses de Verão.

Como uma desgraça nunca vem só, pretendeu o viageiro despedir-se de Aveiro, levando nos alporches uns ovos moles. Vai um homem de abalada até à famosa confeitaria Peixinho. Não têm, não lhes apetece vender, está a produção toda reservada. Para quem?, pergunta o visitante. Para os aveirenses!, responde a proprietária. Vire-se costas sem entender uma coisa: mas esta gente vive, durante todo o ano, de quem, exactamente? Valha ao viageiro que há concorrência. De muito lhe valeriam os saborosos doces que adquiriu na confeitaria e pastelaria Ramos.

 

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As viagens consomem tempo. Ir de Aveiro ao Folgozinho, algures no sopé da serra da Estrela, é cansativo, não fora... ir com o objectivo de comer no Albertino, "o melhor restaurante" de Portugal.

Ao contrário de outras ocasiões, o Pedro não está. Em compensação, conheça-se o pai, o senhor que deu a conhecer ao mundo a aldeia. Fica um homem a saber as condições em que o espaço foi adquirido, quanto custou e como foi pago, histórias interessantes, ainda assim. 

A almoçarada está impregnada do erro perpetrado pela TVI, a qual, na ânsia, de proporcionar a descoberta das cafuas onde se escondem ignoradas casas de pasto, leva as pessoas ao engano. " Que não, senhor! Não se fazem essas coisas que passaram na televisão. Só por encomenda... e, ainda assim..."

Valha-nos isso. Detesto ver restaurantes desgraçarem-se com a exposição que as televisões lhes dão. O repórter Paulo Salvador é useiro e vezeiro no descaminho que provoca. Não faz muito tempo, fui, a conselho daquele, à Adega Nunes, ali bem perto de Messines. Paguei borrego requentado por cabrito no forno. Adiante.

Para que se entenda a diferença entre o Albertino e os demais, diga-se que não me agradou o leitão, um dos cinco pratos que fazem parte da ementa que se degusta por dezasseis euros, tudo incluído. Reclamação feita, toma lá com nova dose a fumegar, e, a oferta extra de vitelinha acabada de chegar do matadouro. 

É assim que se cativam os clientes. Acrescente-se que frequento o Albertino há tantos anos quantos os que da sua existência se conhece: trinta. Pagava, na altura, mil escudos por pessoa.

A refeição arrastou-se até meio da tarde, posto que, este viageiro, homem prevenido, decidiu comprar pão, queijo e feijoca. A última chegará ao Estoril; os dois primeiros, nem por isso.

 

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Era chegada a hora de rumar ao local que tão longa viagem justificara: Cabeça, a já referida "Aldeia Natal".

À chegada, enorme contratempo: havia obras que impediam que os carros se acercassem da aldeia. Caminhe-se, pois, por entre tubos, lama e tractores. Isto, na véspera da consoada. Lindo serviço.

 

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A aldeia estava engalanada, contudo, não se via vivalma: "Talvez mais logo; talvez amanhã". Pois, talvez.

 

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Com a esperança na alma -- onde quer que ela se situe --, abala o viageiro para a pousada convento de Vila Pouca da Beira, local onde pernoitaria até dia 26.

A primeira impressão é a de faltar pessoal, algo que o futuro confirmaria. É a própria gerente quem me recebe, quem me fala do local, dos espaços que só no Verão são possiveis desfrutar, das condições para ali passar a consoada. À medida que a senhora avança, vou torcendo o nariz. Nada daquilo me agradava, visualizando desde logo que iria passar fome ou pagar uma fortuna para jantar no dia 24. O pão e o queijo trazidos no bornal, mais as vitualhas previamente seleccionadas à saída de Lisboa, começavam a tornar-se atractivas. Porém, não deixo que me estraguem uma viagem.

 

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Estão seis graus às dez horas da manhã do dia 24. Faz um frio de rachar, todavia, o espectacular céu deste Inverno teima em nos convidar a sair, a dar uma volta. Não lhe façamos a desfeita e avancemos até Avô, distância que se cumprirá em menos de dez minutos, não fora a paragem no miradouro onde poetas locais mais ou menos amadores, que não meros anónimos, se celebram em versos carregados de rima, porém de qualidade tosca. A partir do alto rapidamente nos apercebemos ser a vila abençoada pelo rio Alva, que lhe proporciona arquitectura própria deste tipo de localidades: pontes várias com arcaria diferenciada, represas, suaves cascatas e até um pequeno ilhéu a que chamam de Picoto.

 

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Um relance da vista atrai-nos: a fachada da porta do castelo envergonhada por detrás do casario. Algumas pedras à direita e à esquerda do portal parecem querer confirmar que ali existiu amuralhado defensivo da passagem entre margens do rio, pois não descortina o viageiro outra utilidade a uma construção que nem a localização altaneira mereceu dos seus construtores.

 

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Quem viaja gosta de aprender: o que está escrito e o que não está, o que depende do dizer de quem sabe. Umas vezes tem sorte o viageiro e encontra quem o ensine; outras, não. Avô está silenciosa, quiçá os habitantes andem atarefados com a consoada, ou de seu ser não estejam para muitas falas, contudo, há uma fonte que canta; fá-lo baixinho, um rugido quase imperceptível, como que para seduzir quem os lábios lhe oferecer. Está triste, a fonte cantante: debruço-me e ouço-lhe os lamentos; que ninguém a procura durante esta quadra; que o consumismo substitui a água por whiskey. E acaba a chorar no meu ombro, que a não consigo consolar: se uma fonte não dá de beber a quem passa, de que serve? Condescendo, bebo uma pinga de água e percebo o rumor que lhe vem das entranhas: canta, acredite-se... então não é que canta mesmo?! Fique por desvendar o mistério que a fonte cantante me pediu para não revelar. O conselho aqui o deixo: beba-lhe da água e descobrirá o que ora escondo.

 

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Olha o viageiro para o trajecto planeado: anuncia-se a Aldeias das Dez, pertencente à rede das aldeias de xisto, nome curioso, do qual se fica por saber a origem. Viveriam ali, originalmente, dez habitantes, dez famílias? Existiriam apenas dez casas? Dez qualquer coisa, é, certamente, a resposta.

 

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Logo à entrada, uma fonte – hoje deu-me para isto – mostra-se curiosamente enfeitada. Os pinos da estrada habitualmente colocados para impedirem o estacionamento anárquico, encontram-se vestidos tal como se fossem bonecas: todas diferentes; todas coloridas. Bendita fonte que se água não deres doutra forma compensas o viageiro Uma jovem estende um belo sorriso ao cruzar-se com quem não conhece, mas tem cara de ali estar por bem. O visitante saúda-a amavelmente com um bom-dia.

“Onde raio estão as casas de xisto?” é pergunta que acode à mente do viageiro, ao deparar-se-lhe uma aldeia que não se diferencia doutra qualquer de montanha.

 

 

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Na curva seguinte surgem as referências fotogénicas do local: cabina telefónica e marco do correio dos antigos, pintados de vermelho e branco, a que acresce o rodapé em preto no caso do segundo. Anda o visitante de cá para lá e nada de xisto ou ardósia, como se denominavam os quadros negros na escola da sua infância. São mais as vozes do que as nozes, pensa quem se sentiu defraudado na Aldeia das Dez. Fique o sorriso impagável da jovem que passou junto à fonte. Como se chamará?

 

Descalça vai para a fonte
Leonor pela verdura;
Vai fermosa, e não segura.

Leva na cabeça o pote,
O testo nas mãos de prata,
Cinta de fina escarlata,
Sainho de chamelote;
Traz a vasquinha de cote,
Mais branca que a neve pura.
Vai fermosa e não segura.

Descobre a touca a garganta,
Cabelos de ouro entrançado
Fita de cor de encarnado,
Tão linda que o mundo espanta.
Chove nela graça tanta,
Que dá graça à fermosura.
Vai fermosa e não segura.

 

(Continua)

 

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