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Das Viagens

Viajar devia de ser como o sonho: uma constante da vida. Aqui trago relatos apoiados numa visão muito pessoal do prazer de cirandar por aí.

Viajar devia de ser como o sonho: uma constante da vida. Aqui trago relatos apoiados numa visão muito pessoal do prazer de cirandar por aí.

Das Viagens

16
Abr17

SEM... CABEÇA - PARTE QUINTA

Eduardo Gomes

 

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A celebração da noite de consoada começa no próprio quarto da pousada. Compõem-na pão, enchidos, queijos, doces de ovos e vinho maduro e doce, ambos alentejanos, dos bons. A missa do galo em Cabeça clamava pelo viageiro que queria assistir a algo típico. A expectativa de quem tão grande distância se aprestava a percorrer a hora tão tardia, passava por ver uma aldeia cheia de vida, comércio a funcionar, devoção religiosa e madeiro a arder.

 

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O visitante queda perplexo à chegada: não se sentia vivalma, arrumava-se o carro quase dentro da igreja. Um madeiro envergonhado ardia dum lado para logo se apagar do outro; gente, só à lupa, não mais duma escassa dezena de habitantes locais cirandando à volta do calor frouxo e tímido; comércio nem vê-lo; a missa, em banho-maria, aguardando pelo atardado padre.

 

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A mulher quer ir assistir ao culto: vá! O viageiro ainda se atreveu a entrar quando viu que a igreja se parecia vir a compor. Dentro, tosse e catarro ameaçavam o contágio. Volte um homem ao exterior, aqui e ali mete ou metem conversa com ele os relapsos à missa, ora em volta do madeiro: que "arder, já não arde; as vimes foram-se", explica quem parece saber da poda. Faz frio, o homem volta a meter o nariz no lado de dentro da igreja. Hora da homilia. O cura demonstra tantas dificuldades de dicção quão frágil e descabida é a sua mensagem: apela aos novos (onde estariam, que não se vêem?) que ajudem e auxiliem os idosos (sob pena de excomunhão); exalta a família que há muito deixou de existir. Gostaria este intruso de escutar abordagem mais lúcida, virada para a realidade de hoje, mais de acordo com os novos hábitos de vivência em sociedade, com os novos núcleos de afectividade. Debalde: o pároco é um tosco; as cerimónias em Cabeça uma fraude. Vamos embora!

 

Volte-se à pousada.

O jantar na noite de Natal era oferecido a 35 euros / pessoa, bebidas não incluídas Condição prévia: terminar obrigatoriamente às 21H30. As reacções não se fizeram esperar, tão pertinentes quanto o direito dos empregados em irem para suas casas partilharem a noite com as respectivas famílias. O hotel avançou com uma suposta compensação a quem pretendesse prolongar a festa: uma ceia estaria montada e disponível para usufruto noite fora, grátis. O viageiro chegou de Cabeça acabaria de nascer o menino, se acaso houvesse nascido no preciso dia 25, e Maria fosse pontual a dar à luz. O que se afirmara farto e lauto, estava muito longe de o ser: restos de frango, de lombo assado, de doces: sobras do jantar pago a peso de ouro, tudo frio, coisa pouco aceitável num hotel, cujos recursos, certamente, envolvem uma simples lamparina para aquecimento dos pratos ou travessas. Como se não chegasse, eis que o acompanhamento se faria a água... em noite de Natal. Seria investimento para além do recomendável colocar duas ou três garrafas de vinho do Dão? Valeu ao viageiro ser homem prevenido e, por tal, rapidamente uma garrafa de Monte Velho e outra de Porto apareceram a satisfazer as papilas gustativas. O Pum!, efeito provocatório do saca-rolhas e da raposice do viageiro, logo provocaram o espanto e a inveja nos demais hóspedes, tão circunspectos e fechados na sua concha familiar, que nem as boas-noites dão à chegada ou à partida: espírito de Nata, entenda-se. E assim se resolveu o intrincado dilema do que comer e beber em noite de consoada.

 

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O dia de Natal fora atempadamente planeado. O restaurante o Pascoal, no Fajão, aldeia de xisto, oferecia chanfana já conhecida do viageiro.

 

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O passeio é agradável, embora cansativa a condução. A igreja, o madeiro, um presépio donde o Menino havia fugido, lembram ao visitante a época que se atravessa.

 

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A especialidade da casa estava aquém do esperado, e disso ficou conhecedor o dono, que se desculpou com a especificidade do dia. A ver vamos, que ali voltará certamente o viageiro.

 

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Tempo de falar da pousada. As instalações estão longe de se apresentarem degradadas como em muitos outros casos. Tanto quanto soube, as melhorias receberam fundos de apoio da União Europeia, o que parece condicionar futuras decisões, posto que o contrato entre o grupo Pestana e o proprietário, a Fundação Bissaya Barreto, caduca em Julho próximo. Mas antes, falemos do presente. Trata-se de uma unidade hoteleira banal, instalada num convento de localização pouco interessante. A directora procura cativar os hóspedes a que usufruam do espaço que pouco tem para oferecer. Não existe uma piscina interior ou mesmo pequeno ginásio que seja, e até a sala de estar se mostra exígua, não possuindo mais do que duas mesas. Imagine-se que os 25 quartos estejam ocupados e facilmente se compreende a falta de conforto da unidade. Refira-se que me pareceu problema de fácil resolução, posta a existência de duas salas de jantar das quais não lhe visualizo a utilidade. O mobiliário dos quartos faz lembrar a segunda casa de muitas famílias: leva-se para lá o que não se quer na primeira. Não há harmonia; não há uma secretária onde se possa escrever ainda que no próprio computador E internet só junto do lobby.

Existe ainda um salão de eventos, cuja utilidade é bastante duvidosa, posto o reduzido número de quartos não permitir albergar grandes comitivas. Acresce a área de jogos em local tão húmido que de pouco serve.

 

 

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A igreja do convento possui acesso parcial aos coros alto e baixo a partir do interior. Por estar a zona na mais completa obscuridade, é necessário pedir que nos acendam as luzes. Não devia o espaço estar iluminado em permanência? Consumia electricidade, sem dúvida, porém, é uma das partes mais interessantes da pousada... local que, estranhamente ou talvez não, ninguém visita.

 

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O melhor da pousada são os empregados, ainda assim com critérios algo diferenciados em função dos hóspedes, alguns deles habituais, cuja relação chega mesmo à oferta de presentes de Natal, conforme o viageiro pôde observar e com os quais, “compram” tratamento especial. Nada tem este hóspede contra eventuais empatias adquiridas ao longo de meia-dúzia de noites ali passadas. Porém, quem não quer ser lobo, não lhe veste a pele: se as ofertas fossem deixadas a seu recato na recepção, ninguém se teria apercebido de tal; se a subserviência dos empregados fosse discreta, ainda menos. A família em causa era constituída pela D. Micas, o sr. Dr. o menino Justino de catorze anos, e a infantil Quica, um ano mais nova e presunções de mulher no modo de vestir. Assim que ao hotel chegou, o clã tomou a posse simbólica do edifício. A pobre da Catarina, atenciosa recepcionista, logo se transformou em burra de carga da menina que, telemóvel na destra e trolley na canhota, liderava rumo aos quartos, qual general indicando o caminho para a vitória. O mano, todo ele dado a titilamentos, enfiava os phones e brincava com o Ypad. O perliquitetes papá falava que se desunhava ao pequeno almoço, ante o movimento esvoaçante do responsável de mesas, que fixava o interlocutor como se de Deus se tratasse. A D. Micas era a responsável pela ocupação do alcácer do castelo, área ali denominada pomposamente de “sala de estar”. Como o espaço ficasse estrategicamente situado em frente à lareira, e só possuísse uma mesa e três sofás dignos desse nome, o território foi oficialmente considerado anexado. Manhã cedo cada um dos membros da família ocupava o seu assento, procurando que, mesmo em caso de ausência, a desarrumação e os objectos pessoais deixados por mesa e sofás insinuasse que estava ocupado. Coisa rara de acontecer, diga-se, pois aquelas alminhas tomavam o pequeno-almoço... na pousada; almoçavam... na pousada; faziam reforços de vitualhas pela tarde... na pousada; jantavam... na pousada; não saíam... da pousada; monopolizavam a televisão... da pousada com canais de desenhos animados ouvidos em altos berros; e nenhum dos empregados se comovia dos outros educados hóspedes que tudo penaram... na pousada.

Principais conclusões:

1- Estive em Cabeça a 23 e 24 de Dezembro. Não consigo confirmar o que tanto se apregoa acerca da Aldeia Natal;

2- Cear num qualquer estabelecimento na noite de consoada, custa uma fortuna. O espírito natalício não existe, trata-se, simplesmente, de negócio.

 

FIM

 

 

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