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Das Viagens

Viajar devia de ser como o sonho: uma constante da vida. Aqui trago relatos apoiados numa visão muito pessoal do prazer de cirandar por aí.

Viajar devia de ser como o sonho: uma constante da vida. Aqui trago relatos apoiados numa visão muito pessoal do prazer de cirandar por aí.

Das Viagens

11
Abr17

SEM... CABEÇA - PARTE QUARTA

Eduardo Gomes

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Quem parte do meio e a dois pontos que se situam em polos opostos pretende ir, forçosamente regressa ao lugar de partida. Lourosa era a nova etapa que obrigava a recruzar, no sentido inverso, Vila Pouca da Beira. A igreja moçárabe da antiga sede concelhia é extraordinária. A vista extasia à chegada ao adro, local onde o visitante estaciona o carro em lugar de conveniência, que só depois repara estar destinado ao pároco. Em dois tempos se viu rodeado de um par de idosos, cada um de seu sexo, discutindo entre si. “Padre possessivo, que nem na ausência deixa que lhe tomem o lugar, ainda que por breves minutos”, pensou o viageiro, enquanto a querela entre os anciãos terminava com a desistência do homem. “Agora é que não percebo nada. É a mulher a guardadora do espaço? Tiro ou não o carro daqui?”, questionou-se o intruso. A senhora Maria – se assim não for, por tal fica baptizada – avançou decidida:

– Quer visitar?

Certamente! Não fora assim e que faria ali o curioso, perplexo a observar a traça exterior do edifício?

– Se quer, venha daí. Entre por aquela porta – diz a velha, dedo espetado, como que a ordenar.

 

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Logo à entrada surge a arcaria monumental, separadora das três naves de que se compõe o templo, em forma de ferradura mourisca, beleza incomum:

 

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– Foi certamente construída sobre uma mesquita árabe ou mesmo templo visigodo – diz o visitante.

– Antiga, senhor! A mais antiga onde alguma vez se proclamou o culto da palavra. Já aqui se celebrava ofício divino antes de ser igreja.

O viageiro não percebe a abrangência da expressão. Tem a certeza que aquela não é a mais antiga igreja em território português, e, por tal, duvida da atribuição da primazia de culto que a anciã salienta. Adiante.

 

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A mulher estuda o homem, observa para onde dirige os interesses: primeiro uma pietá, mais logo, Nossa Senhora Medieval, falsa Senhora do Ó, pois, aparenta gravidez sem o estar de facto (dizem os peritos). Estava dado o mote que a guia tanto esperava:

 

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– Está a ver a imagem? Pois olhe que é a mais valiosa de todas as que aqui dentro estão. O Leitão de Barros queria-a levar um dia que veio por aí. Não deixei e não deixo, que para roubar já cá houve muito quem se aproveitasse.

Um homem vai para responder, porém a mulher não tenciona ouvi-lo:

Saiba o senhor que estive a trabalhar coisa de vinte anos em Lisboa... Olhe, em casa do Dr. Roque Gameiro... Conhece?

– A família do pintor? – retorquiu o ouvidor.

– Pois sim... quero dizer, até à tragédia – olha de soslaio para medir reacções – … depois vim-me embora.

Instala-se o silêncio por alguns segundos, o visitante não foi ali para mexericar em vida alheia. A idosa ganha novas forças:

– Quando voltei, ih, Jesus!, o que por aí ia de descaminho. Então não é que haviam roubado a Cruz Processional? Recuperada a alfaia, fui à diocese e consegui ficar com as chaves da igreja.

 

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– Perturbante este espaço, contudo, belo é o presépio – exclama o visitante a um canto que uma porta encerra.

– É, sim senhor, pertencente à igreja original! E olhe que aí onde bota os pés, estiveram o Cerejeira e o Tomás. Quiseram visitar a igreja, e fui eu mais o senhor bispo quem os recebemos.

 

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Chegara o tempo de passar ao exterior a observar a arquitectura. A senhora Maria segue-me:

– Olhe que a torre era bem maior. Para lá chegar acima, possuía uma escada em caracol. Está a achar estranho? – questiona mais para introduzir o próximo esclarecimento do que para ouvir opinião externa. – Foi trasladada, que aqui não estava originalmente.

 

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– E mais além, naquela laje que, por vedada estar, me parecem sepulturas antropomórficas?

– isso não lhe sei explicar, mas é muito antigo, coisas de mortos.

– E o projectado museu de Lourosa?-- equaciona o viageiro.

– O senhor acredita nisso? Olhe que eu cá, não. Levam tudo para Coimbra, lanças, imagens de santos, azulejos. E até o púlpito que por aí existia levaram para a casa paroquial.

Faltava a investida final:

– O senhor quer comprar uns calendários. São a três euros. E olhe, tenho ali umas fotocópias sobre a igreja. Dois euros e cinquenta cada uma.

O viageiro não precisa nem duns nem doutros. Dá-lhe um euro que a mulher logo enfia no bolso da bata.

 

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Deixe-se agora o que mais importante há a assinalar com referência à Igreja Moçárabe de S. Pedro de Lourosa. O templo, cuja forma basilical nos remete de imediato para a arte visigótica, possui datação romana visível numa pedra: DCCCCL. A reconversão da era de César para a Cristã atribui-lhe o ano da fundação: 912. A senhora Maria labora em vários erros. A igreja não é “romana”, é de arquitectura “pré-românica”, estilo seguido em plena Reconquista, sobretudo no norte da Península, compromisso de transicção até ao aparecimento do “românico” de origem francesa.

 

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O carácter “moçárabe” resulta da inclusão num templo cristão de elementos árabes como as janelas em ajimez e a salientada arcaria. É consistente pensar-se que a igreja possa haver sido construída por cristãos a viverem em território mourisco, num tempo em que a fronteira oscilava que nem ioió, para norte e para sul. Pelo menos, até Fernando I, o Magno, bisavô de Afonso Henriques, ter conquistado definitivamente o território aos sarracenos.

 

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A localização da torre teve a ver com um campanário que lhe havia sido acrescentado no medievo, e, já no século passado, entendida como boa a sua trasladação para as traseiras da igreja por questões visuais. É salientada a existência em tempos de uma iconostase, retábulos em talha, altar-mor em estilo rococó e coro sobre a porta de entrada, actualmente o chamado nártex, os últimos daqueles removidos pelo projecto de restauro datado de 1930/31. Embora nunca sejam pacíficos os planos de recuperação de tão importantes monumentos, parece haver sido intenção dos responsáveis retirar-lhe tudo o que acrescentado fora sem critério ao longo dos séculos. Daí parte das reclamações da senhora Maria.

 

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O cemitério acima assinalado é de origem visigótica, cujas sepulturas se encontram escavadas em laje de xisto no exterior do edifício, sendo crível aceitar-se que as diversas ampliações que o templo foi alvo possam ter coberto importante área daquelas.

 

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Um homem ainda passa pelo belo chalet onde, em tempos, funcionou a câmara municipal, para, logo após, abalar.

 

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A hora do almoço exigia a deslocação a Oliveira do Hospital, posto já se estarem a sentir os efeitos da “greve” dos empresários da “restauração”, vocábulo que, apesar de muito usado, me deixa enormes dúvidas sobre a sua correcção. Avancemos. O eleito foi o restaurante O Túnel, cujo bacalhau é mau de mais para merecer sequer a referência que aqui faço. Preocupado, o viageiro começa a bater a todas as portas no sentido de se precaver com a refeição da noite. Não que aspirasse por uma qualquer consoada à beira de lareira oferecida, que sentimentos de partilha assim já não existem num povo que se tornou egoísta, manipulado por miseráveis líderes. Um “jantarito”... tão-só... coisa para não passar fome. Que não senhor, tal era impossível; que voltasse na próxima semana, pela reabertura. Obrigado, mas não.

 

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Contudo, o dia ainda não acabara. Dá-se o viageiro a buscas pelo que de importante há na cidade. Vai pela Igreja Matriz, tendo por objectivo a gótica capela dos Ferreiros, construção da primeira metade do século XIV, que àquela está anexa, na fachada norte. Ali estão sepultados, túmulos em granito, Domingos e Domingas, Joanes, ele, Sabachais, ela. O sepulcro está gradeado, torça-se quem quer fotografar. O bom gosto é óbvio, o investimento também. A ganhar deve ter ficado o aragonês Mestre Pego, escultor ao serviço de gente abastada.

 

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Ao fundo, tão latâneo que mal o distingue quem arrisca um torcicolo, um alto relevo com cinco imagens encimado pela Virgem e o Menino. Mais ao lado, em pedestal próprio, o proprietário mandou que se esculpisse uma imagem sua a cavalo.

 

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Alguns, escassos, quilómetros decorridos e eis que o viageiro chega às ruínas romanas da Bobadela. O fórum, hoje no centro da localidade, era uma grande praça rodeada de pórticos e edifícios públicos, lugar para onde confluíam as duas vias da civitas splendidissima. O ex-libris do local continua a ser o arco de cerca de quatro metros de altura.

 

 

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O Anfiteatro frustra quem ali se desloca em busca de imagináveis feras em suculentas refeições ou gladiadores em combates mortíferos. Pequeno, sem galerias subterrâneas, deve ter sido usado para festas de carácter popular e religioso.

 

 (Continua)

 

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