SEM... CABEÇA - PARTE PRIMEIRA
DEZEMBRO DE 2016
Com tantas Primaveras apontadas na contabilidade celestial, suponho que foi a primeira vez que decidi passar a época natalícia fora de casa. Não por aquele espírito de comodismo que se tornou moda entre os calaceiros que nada querem fazer. Claro que se tiverem quem trabalhe por eles... porém, dentre os mais idosos -- vítimas preferenciais --, muitos vão morrendo, e outros reconverteram-se e fazem hoje o que criticaram ontem. No primeiro caso, o cerne da questão é fácil de identificar: a auxese proteccionista de papás e mamãs aos seus rebentos, “meninos e meninas” que, com quarenta anos, independentes financeiramente, ainda vivem em casa de família, no conforto de cama, mesa e roupa lavada. Dêem-se de barato as variantes para mais e para menos do sistema, que a paga é feita em falta de educação e agressividade verbal: os “velhos” tudo aguentam. Fiquemos por aqui, evitemos a procela tumultuosa, que muito haveria a dizer acerca do modus vivendi de uma geração transportada ao colo do berço à tumba.
A minha opção prendeu-se com o facto de, conjunturalmente, este ano, não ter comensais dependentes de mim: filhos casados, regime de alternância pai/sogro. Busque um homem cumprir um ideal antigo: passar os dias de festa onde arda um madeiro numa qualquer aldeia de Portugal, no interior, de preferência. Dizem que o pai dos lenhos se situa lá para as bandas de Penamacor. Este viageiro não almeja tanto, fica-se por Cabeça, auto-intitulada “Aldeia Natal”, localizada nas faldas da Serra da Estrela.
Para que o escrevinhador não perca o fio à meada, abandonemos a introdução, que a ela voltaremos mais tarde, para deixar claro que o Natal começou no dia 21 em Aveiro, por razões de saúde que pouco cabem aqui esclarecer.
A manhã esvai-se com a viagem que apontou directamente ao Zico, tasca de pronto-a-comer. Sentamo-nos na barra, que as mesas estão ocupadas, o que o viageiro já desconfiava pelas informações com que previamente se munira. O ritmo de atendimento é alucinante, os empregados transpiram, percorrem milhares de vezes o estreito corredor que lhes está destinado sem se atropelarem, o que fez o comensal equacionar se seriam matéria, pois para tal precisariam de ter peso e ocupar espaço, o que não ficou totalmente provado. Barriga a dar horas, peça-se um bife com molho de alho, auto-afirmado “o melhor do mundo”, e umas petingas fritas com salada de feijão frade. Se o primeiro é bom, as segundas batem-no aos pontos. O viageiro vem das brumas do tempo, em que bife se associava a doença, altura em que se fazia pelas casas portuguesas um enorme esforço económico para recuperar o ente da enfermidade. Coisas do passado que seria bom não voltarem. Lambuza-se o homem; lambuza-se a mulher, e não de forma meramente literária: é que os peixinhos comem-se à mão e não há guardanapos suficientes para tanta lambuzadela. No final gastou-se pouco mais de vinte euros. O visitante começa a gostar de Aveiro. Aos internautas que tão mal falam do Zico, legue-se um conselho: e que tal, se em vez de resmungarem contra tudo e contra todos, decidissem o que querem antes de entrar, e começassem por respeitar o direito dos outros a serem diferentes?
Salte-se agora a parte da tarde, que já dei a entender ao que ali fora, e arroubemo-nos com o movimento da cidade: fascinante. Aqui apregoam-se castanhas a fumegar; ali bolacha americana em bidão a condizer com as memórias dum homem.
Estarão meia-dúzia de graus e as ruas cheias de gente. O centro comercial, à beira dum braço da ria, comunga de idêntico espírito: é a céu aberto. As lojas têm frentes tanto para a avenida como para as ruas interiores que cruzam o edifício de leste para oeste.
– Começa a fazer-se tarde, se não nos despachamos, corremos o risco de não jantarmos. Li no trip advisor que o responsável pelo Adriano é antipático como o diacho -- recorda a Tânia.
Na rua, extasiado, o viageiro ouve a esposa bem ao longe, coisa oriunda do sub-consciente. O outro, o lado A do cérebro, observa o vendedor da bolacha, recorda a mulher da fava-rica. Transmuta-se a realidade: são cinco da manhã de um qualquer dia dos inícios de 1960: – “Dois tostões, ti Costa” – diz a vendedeira, cartuxo das leguminosas na mão estendida, pronta à troca do produto pelo dinheiro.
Um homem entra no túnel do tempo, são cinquenta e tal anos que se percorrem num ápice:
– Sim, sim, mulher, é melhor irmos andando, e não te esqueças: simpatia atrai simpatia, não é com vinagre que se apanham moscas – diz numa alusão aos epítetos com que o carácter do sr. Manuel é mimoseado nas redes sociais.
A má fama indelével propagada através da net ameaça o mundo: antes fora o Zico; agora o Adriano. Se no primeiro as criticas iam para o tempo de espera, aqui, vão para a decoração, o tamanho do ecrã da televisão, a antipatia do proprietario e tudo o mais que espíritos desfocados conseguem imaginar. Quando compreenderão os maldizentes qual a função dum restaurante? Se querem o mundo duma só cor, rumem a Marte: parece que por lá tudo é vermelho!
À chegada, o primeiro contratempo: a porta estava encostada. Empurre-se com suavidade, saude-se quem está e requeira-se a permissão para entrar. Ou comíamos ou passávamos fome, que alternativa não havia, tão adiantada ia a noite. O funcionário mira-me de alto a baixo, aponta-me a mesa com a mão sem dizer palavra. Entrega-me a ementa em modo taciturno, porém, sem ponta de desrespeito. Poucos são os clientes àquela hora. O Manuel a todos vai servindo com calma olímpica e silêncio significativo. Deu-me alguns minutos: voltou de bloco e lapiseira na mão. Continua sem falar: o gesto significa tudo. Adianto:
– Duas doses de vitela à Lafões, se faz favor.
– Uma chega muito bem!
O homem afinal sempre falava... E para dar um bom conselho... Ora toma!
Caçarola a fumegar, atira-se o viageiro à carne de vitela mais deliciosa que alguma vez comeu: valham-nos os santinhos todos do Céu e da Terra. Imagine-se então que o prato custa dez euros, e que a refeição, com uma “trapalhada” – é mesmo assim o nome da iguaria – por sobremesa e dois cafés pra esmoer não ultrapassa os dezassete euros.
Não nos precipitemos, que ainda há mais para contar. Aconteceu que, dentre os presentes no restaurante à nossa chegada, avultava uma idosa que não parava de tentar ligar a alguém. A cada garfada sucedia-se um novo acesso ao teclado, algo que só acabou quando o gadanho nada mais tinha para picar. Afogueada, eis que entra uma jovem e se desfaz em mil desculpas, enquanto procura poiso para si, para o casaco e para a mala. Debalde. A velha preparara-lhe tamanha reprimenda que a rapariga acabou por perder o apetite. Logo após chegou um grupo de trintões, três, mesa previamente reservada.
Começam mal:
-- Que nos recomenda? O meu primo diz que aqui se come um bom bacalhau -- diz um daqueles.
-- Mau estalajadeiro seria eu se lhe aconselhasse algo. Ao elevar uma especialidade, estaria a diminuir todas as outras -- responde o Manuel, sem qualquer espécie de prurido pacóvio.
O grupo fica estupefacto: ninguém esperaria por uma daquelas. No entanto, um deles mostra-se audaz:
-- Achas que o homem sabe quem é o teu primo? -- pergunta, ainda assim retórica, ao que primeiro falara.
Sem tugir nem mugir, o Manuel indica-lhes a mesa mesmo por detrás da minha. Calaram-se os histriões. De trapalhada já bastava a original, a que dá o nome à sobremesa da casa. A mim, observador atento, começava a agradar-me a personalidade do Manuel. Continuemos.
A velha e a jovem saem, entretanto, em perfeito conflito de gerações. Mais longe do que o espaço deixa supor, que a vitela não permitia outro tipo de foco, ouço falar de motas: as nossas; as dos outros; as de competição; o conhecimento da mecânica, tudo com'ò ou do caralh...; credo!, os tipos não param com tanta asneira e a vitelinha já se acabou. Aguarde-se a sobremesa. “Eles” mudam de registo, passam ás mulheres: as “boas” e as próprias, logo devidamente catalogadas:
– A minha ficou em casa; só faltava agora trazê-la a reboque.
– Pois eu não estive com meias medidas: não quiseste o miúdo? Agora atura-o.
Para logo rematar o mais velho:
– É bico calado, que mulher é para lavar a loiça e cozer as peúgas
Que mais há para dizer? Quadrupedantes triplicados.
(Continua)