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Das Viagens

Viajar devia de ser como o sonho: uma constante da vida. Aqui trago relatos apoiados numa visão muito pessoal do prazer de cirandar por aí.

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Das Viagens

04
Jan18

NATAL EM MONS SANCTUS - PARTE PRIMEIRA

Eduardo Gomes

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Dorso de monstro a crescer para nós até tomar conta de todo o céu

 

Foi com a frase acima que Fernando Namora se referiu a Monsanto, a “Aldeia Mais Portuguesa de Portugal”, conforme concurso datado de 1938. Outras figuras à terra se dirigiram em versos e prosas, dentre as quais se salientam Zeca Afonso e José Saramago.

Se o Natal é quando um homem quiser, pode também acontecer onde este o desejar. E o viajante quis que fosse ali, no Mons Sanctus romano, com olhos de águia sobre a presa lá em baixo, que, por estas bandas, tanto se poderá chamar Relva como Eugénia. Se o hominídeo pretender desafiar a vista e a memória geográfica, entreter-se-á a talhar nomes para as serras que vislumbra do quarto, membros superiores apoiados no parapeito da pequena janela de tipo guilhotina.

 

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Posto haver residido na escolha do hotel a dúvida maior na decisão relacionada com o “onde ficar”, comecemos por aludir à opção encontrada, tratando-o pelo nome próprio: Monsanto, Geo-Hotel Escola, isto é, a antiga pousada de Portugal, uma das que o senhor Pestana descartou habilmente, a qual, emmentes, terá passado por mãos privadas, até que a Câmara de Idanha lhe deu segunda vida e objectivos em consonância com a nova missão. Por ali tudo tresanda a inexperiência, a gosto duvidoso, a investimento controlado, a serviços mínimos, mas também a simpatia, a desejo de superação, ou seja, bem à portuguesa, procurar fazer das tripas coração, algo transversal à Fátima, à Cátia ou ao Jorge, funcionários da unidade hoteleira.

 

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Em relação ao período “pousada”, nota-se que perdeu o restaurante, que não a capacidade de prover refeições. Diz-se que tal terá sido imposição dos empresários locais, algo que não se compreende por duas ordens de razões: a primeira porque os estabelecimentos existentes na aldeia parece abrirem e fecharem quando lhes apetece; a segunda, a fazer fé na premissa inicial, entendida enquanto incrível cedência negocial do município Idanhense. Certamente que não dominarei os meandros do assunto, porém, que é bizarra a situação e nociva para os interesses da aldeia, não restam dúvidas.

 

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E, afinal de contas, em que ficamos: vale ou não a pena ficar no Monsanto Geo-Hotel Escola? O meu conselho vai no sentido de que em vez de reclamar das molas do colchão que lhe magoam o corpo ou da almofada rija, alta e cheia de pedaços de gorgorão, vá fazer o Percurso dos Barrocais ali mesmo, em Monsanto: à volta de S. Pedro de Vir-a-Corça estará tão cansado que adormecerá embalado nos braços de Morfeu; se o seu problema for o barulho do ar condicionado que ainda funciona “a lenha”, vá fazer a Rota dos Fósseis, em Penha Garcia: a beleza paisagística inebriá-lo-á, nenhum som maculará jamais ouvidos a que assobiaram as águas dos moinhos de rodízios; se quer criticar a exiguidade e falta de variedade do pequeno almoço, esqueça o material e pense no bem que lhe fará ao espírito caminhar à beira do Erges, em Monfortinho.

 

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Ah!, e se já estiver farto de aturar a mulher e os filhos que não largam o I-Pad nem às refeições, numa manifestação de desconsideração para consigo – ainda que você finja que não nota – , deixe-os, vá desvendar os segredos nocturnos da aldeia ou entretenha-se a descobrir São Tomé nas palavras generosas e apaixonadas do Jorge, antigo sargento, segurança, pedreiro e restante pão que a ciência do diabo amassou sem lhe conseguir minar a alegria pela vida e pela família.

E, já agora que estou com a mão na massa: pare de reclamar da inexistência duma caixa multibanco ou da falta de estacionamento local, que o hotel não tem culpa alguma. Cada um deve saber escolher os locais onde se sente bem, e responsabilizar-se a si próprio, e não aos outros, pelas opções que toma. Informação relevante, não falta.

 

Vamos à viagem.

O dia 22 obrigou a cerca de trezentos quilómetros de automóvel com paragem para almoço no restaurante da Srª do Almortão, local do qual nem por inspiração divina consegui apurar a grafia correcta, isto é, se com u, se com o, tão díspares e numericamente equilibradas se encontram as informações nos sinais de trânsito ou nos painéis que por ali existem. Aguardemos pelo milagre da correcção. Repasto demorado, coisa de gente em férias, e ala que se faz tarde em busca do hotel.

 

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Com uma hora de luz ainda pela frente, faça-se uma primeira abordagem ao percurso 5, chamado dos Barrocais, que parte do posto de turismo, ruma a oeste passando pelos Penedos Juntos, e segue, num espectáculo de êxtase pedregoso, até ao patamar onde se encontra a capela de S. Miguel.

– É tarde, começa a anoitecer – diz alguém.

– Falta ver o castelo – reponde outrem.

 

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Faltava, de facto: o castelo, os cães, os porcos, os lobos, as tartarugas cujos formatos nas rochas nos são enviados pela imaginação numa particular perspectiva para logo se esfumarem um passo mais à frente... E as pedras, sempre elas, as verdadeiras culpadas de tanto desatino.

– Amanhã voltaremos.

– Amanhã será.

 

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Não seria bem assim. Era tempo de aproveitar a luz (ou a falta dela) para tirar as fotos que, provavelmente, não conseguiremos repetir.

 

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Avancemos então para a discrição da noite que seria passada no Forum Cultural de Idanha, na companhia da Isabel Silvestre, a do Grupo de Cantares de Manhouce. Isabel, tal como Amália, tem um dom: é a voz de Deus dedicada ao povo eleito, povo que são todos os homens de bem, os quais, certamente, Ele, onde quer que esteja – a acreditar que está em lado algum –, não descriminará por serem católicos, judeus, muçulmanos, budistas, ateus ou o mais que pelos quatro cantos do mundo se encontre. E não venham os poderosos e os ricos aproveitarem-se: Isabel não lhes pertence; Isabel não os celebra nos seus cantares.

Espectáculo atrasado, jantar perdido, pois em Idanha não há onde comer fora de horas. Culpa da Isabel, do Abel Moura e das acompanhantes que se demoraram pelo Helana. Amanhã será outro dia.

 

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Sábado ameaçava ser a única oportunidade de comprar artigos regionais no “Mercado de Natal”, em Idanha-a-Nova. Música e figuras típicas alusivas à época não conseguem esconder o eclipse desta forma popular de comprar e vender. Fique a intenção camarária. Fora, o primeiro madeiro detectado crepitava. Aqueçam-se os elementos femininos do subitamente alargado grupo.

 

À construção do castelo estão ligados o nosso primeiro rei, os Templários e o seu mestre, Gualdim Pais. Do amuralhado, que me pareceu aterrado no interior, tem-se uma fantástica vista. Diz quem sabe que dali se observa a Falha do Ponsul... Talvez para olhos treinados, pois, para leigos, o gigantesco degrau morfológico que se observa ao longo de 120 quilómetros, é indetectável, retiradas que sejam as observações empíricas do tipo “Não vês, ali?”, dedo apontado para uma qualquer parte do curso do rio em que uma das margens apresenta desigual nível. Para memória e cultura, aqui deixo a explicação técnica para o fenómeno:

 

A Falha do Ponsul é uma estrutura tectónica com mais de 300 milhões de anos, causada por um movimento de desligamento esquerdo resultante da mega colisão continental que deu origem ao super continente Pangea e à impressionante cordilheira montanhosa Varisca.

 

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Um madeiro está preparado para mais tarde ser consumido no largo da Igreja Matriz, dizem-nos as velhas enquanto tricotam uma qualquer renda sentadas ao sol protegidas pelo presépio onde Maria, José, vacas, burros e reis Magos se acotovelam num pequeno espaço coberto. Ali, ao lado, a altaneira torre do sino vigia inesperadas consequências do fogo.

 

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Próxima paragem: os fornos dos louceiros. São três “capuzes”, um deles em melhor estado do que os outros, permitindo ver como se cozia a louça em tempos passados. Estão situados no largo de uma zona habitada, servem de caixote do lixo de quem por ali passa e necessidade tem de atirar a beata do cigarro, a lata vazia de refrigerante ou o envelope rasgado do correio acabado de receber. Proponho ao município que encontre solução que lhes dê dignidade, e, já agora, uma placa identificativa pelo caminho a auxiliar o pobre viageiro.

 

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E foi por causa da busca que o visitante deu de caras com a capela de Jerónimo de Estridão, esse mesmo, o santo tradutor da Vulgata Latina. A capela encontra-se no interior da cerca do Convento de Santo António. És homem e em pó te hás-de tornar é a evocação que expressa a obrigatória descida da escadaria para ali aceder. O pequeno altar da capela mostra-nos o mártir antes de o ser, isto é, a imagem carrega alguns dos atributos que lhe são conhecidos enquanto simbolismo iconográfico: leão dormindo a seus pés, chapéu cardinalício e a maqueta de um templo na qualidade de Doutor da Igreja ( faltam, por exemplo, a caveira, a trombeta e a coruja). Ao lado, a tenda que, a cada biénio, alberga a Feira Raiana.

 

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Tempo de seguir para a outra Idanha, a Velha, antiga Egitânia visigótica, Civitas Igaeditanorum para os latinos, fundada em finais do século I a.C., muito provavelmente por Augusto, o conquistador do noroeste interior da Hispânia. Foi sede de bispado no século IV, estatuto que manteria posteriormente sob o domínio suevo e visigótico, ainda que com intermitências. Foi ocupada – naturalmente – pelos muçulmanos, reconquistada no século XII pelos cristãos, que, pela mão e a espada templária, lhe erigiram cerca amuralhada que de pouco lhe serviu, postas as alterações que já se faziam sentir na geografia política da Península Ibérica.

 

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Porém, antes de se perder na povoação, vai o viageiro ver a chamada ponte romana. Franze o nariz às primeiras observações: é mesmo da época romana?, questiona-se ao ver-lhe o traçado e os pilares onde os respectivos arcos se manifestam divididos entre o tipo quebrado e a de volta perfeita, muito provavelmente, resultante das várias reconstruções. Romana ou não, parece ser um dado adquirido que por ali se efectuaria a travessia do rio no medievo e mesmo antes, ponto de passagem da estrada que ligava Mérida (Emerita Augusta) a Braga (Bracara Augusta) por Cáceres e Viseu. O Ponsul vai baixo, permitindo o vau com umas simples galochas, o que facilita a recolha de invulgares imagens fotográficas tiradas de baixo para cima.

 

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Egitânia não possuía acrópole, todavia, há hoje a convicção da existência do forum – centro cívico e religioso –, face aos vestígios encontrados do podium do templo que nele se encontraria. É sobre este espaço que se ergueu a Torre dos Templários, da qual resta ainda um quadrado de paredes com alguns metros de altura abertas para o céu, poiso de muscíneas e talófitas, onde, certamente, Gualdim Pais e Jacques de Molay vão recolhendo os fragmentos e pedras soltas de que o tempo a despoja para a reconstruirem num local secreto só conhecido dos rosacrucianos.

 

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A chamada basílica visigótica é, na verdade, paleocristã, datando a sua fundação do século IV. É constituída por três naves, com o pormenor bizarro do nosso primeiro Manuel (chegámos mesmo a ter um segundo?), com aquela obsessão de ficar para a história, ter-lhe mandado alterar o sentido, que, originalmente, se estruturava de norte para sul, e, após decisão do Venturoso, passou a efectuar-se de poente para nascente. Imagine-se o que terá sido uma capela lateral passar a altar-mor, o transepto a virar enteado no meio da confusão que deve ter gerado entre os crentes. Teria o rei, certamente, especial fascínio pela chamada porta visigótica. Manias de quem deve ter possuído tal ego que não percebeu que tudo – o país incluído – lhe caiu nas mãos por obra de D. João II, esse sim, um Príncipe Perfeito.

 

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O acesso ao interior da mesma é possível sob acordo com o posto de turismo. Ali, a primeira impressão é de desconforto pela humidade, desolação das paredes e desarrumação, à qual só falta o diligente funcionário avançar com a conhecida frase das donas de casa negligentes: “Não notem, que tivemos de sair à pressa esta manhã”. No topo de um dos nichos, uma data surpreende: 1893, por cima dum conjunto de inscrições simbólicas de origem algo enigmática. Alguns frescos, ou restos deles, lembram intervenções posteriores datadas dos séculos IX, XIV e XVI. Outras, mais recentes, referem-se a blocos de degraus bem modernistas e chão que, segundo os interventores, é possível de levantar se acaso se pretender avançar com escavações arqueológicas, ali, no local que, no século XIX, perdeu a sua qualidade de Igreja Matriz para passar a servir de... cemitério.

 

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Nos anos que decorreram sensivelmente entre 1990 e 2005, a localidade foi alvo de um projecto de conservação e manutenção dos edifícios históricos. Recuperaram-se os torreões da Porta Norte, criando-se um passadiço ao longo das muralhas. Acrescentaram-se estruturas em ferro a imitar as torres que originalmente serviram de coroamento do amuralhado.

 

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Por último refira-se o aproveitamento de um antigo lagar de azeite – porventura, originalmente, uma casa manuelina – para não só recriar a estrutura daquele, mas também para instalação do posto de turismo e, em anexo, um museu epigráfico.

O visitante fica encantado com as peças ali arrumadas. Lá voltará por três vezes, como que a acorrer ao chamamento dos mortos, daqueles que da lei da morte se vão libertando. Os testemunhos dos vivos que mandaram gravar em pedra a memória dos que amaram, é, só por si, impressionante. Este viageiro tem a sua preferida. Trata-se duma estela funerária, e o panegírico provém dum morto-vivo. Quem, dentre nós, aceitaria a morte em tais circunstâncias com tamanha doçura?

 

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Ainda em jovem, e sem temer a triste morte, eu, Anceito, filho de Célcio, terminei a minha curta vida. Os meus despojos jazem aqui. Vós, minhas cinzas, descansai em paz!

 

Quiçá “óptimo” não tivesse a relevância adjectival contemporânea, todavia, não deixa de impressionar esta prova de amor:

 

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A Gaio Cúrio Firmano, filho de Pulo, da tribo Quirina, de 63 anos. Cúria Vital mandou fazer para o marido óptimo e para si.

 

De longe vem a capacidade do homem desempenhar vários cargos ao mesmo tempo. Observe-se o tributo numa das placas de pedestal para retrato funerário:

 

A Lúcio Márcio Avito, filho de Fusco, da tribo Quirina, prefeito dos artífices, prefeito da primeira coorte dos sagitários da Síria, tribuno militar da X legião Fretense, prefeito da cavalaria da primeira ala dos cidadãos romanos. Foi condecorado. Márcio Materno, cavaleiro da mesma ala, por mérito ao óptimo perfeito.

 

Num bloco arquitectónico moldurado de monumento funerário, cruzam-se as gerações:

 

Lúcio Coceio Lício, de 100 anos. Gaio Fúrio Lício, emeritense, de 60 anos. Gaio Fúrio Eutíquio, de 20 anos.

 

O viageiro fez um minuto de silêncio em honra de quem há muito partiu.

 

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Subitamente um homem precisa do ar não contaminado da monumentalidade que o envolve. Sai pela porta a sudoeste, passagem nem sempre ali disponível. Dirige-se ao rio, observa as poldras, e, de salto em salto, pula até à outra margem. Desafio “perigoso”conforme avisa a placa identificativa? Quanto dariam os “amigos” que deixei no museu para ali estarem, vivos como eu?

 

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Na hora de partir, o viageiro leva a dúvida consigo: a emblemática porta poente foi mesmo construída pelos visigodos? Era mesmo uma porta, ou somente um lavrado arquitectónico? E, em qualquer caso, assumindo que os germanos não lhe alteraram a orientação do culto, porque não construíram outro acesso idêntico, a nascente, que equilibrasse esteticamente o edifício? D. Manuel redefiniu somente um posicionamento ou mandou derrubar um conjunto de pedras e construir-lhe uma porta para saciar tanto narcisismo? E quanto à simbologia no vértice do triângulo: se a cruz poderá ter sido incluída em qualquer momento, posto romanos, suevos e visigodos, todos a seu tempo, terem passado a professar o cristianismo, já o escudo de Portugal carece da constituição física do reino. Quando foi ali colocado? (Nota: há um terceiro símbolo que me parece uma esfera armilar. A ser assim, as dúvidas tornam-se-lhe também extensivas).


(Continua)

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