DOURO MANSARRÃO - PARTE TERCEIRA
O dia seguinte reservara-o o viageiro para a Rota do Românico. Quatro monumentos divididos por esquivas estradas de montanha que, no final, se revelaram bem mais acessíveis do que no papel faziam crer.
Comece-se pela Igreja de Santa Maria de Barrô, situada a meia encosta, na margem esquerda do Douro, na estrada que de Lamego conduz a Resende. O viageiro ouvira tratarem-na por Nª Srª da Assunção, quiçá devido à existência ali duma imagem setecentista dedicada à Virgem, e vê-se obrigado o corrigir-lhe o orago para Santa Maria. Seja. Está fechada, obviamente, e não menos certo é que não se verá ninguém por perto a quem perguntar pela chave. Observado por fora, o templo, cuja construção se ficou a dever a dotação de Egas Moniz, demonstra as suas raízes românicas, mas também o gótico e o barroco, embora, neste último caso, seja preciso aceder ao seu interior. Ao dispor do viageiro, encontra-se o cuidado portal da fachada e ainda o janelão, a rosácea e os capitéis, todos a denunciarem-lhe o protogótico. A torre sineira é visivelmente tardia, pois datará do século XIX. Pelas imediações o visitante contorce-se por chegar às cerejeiras de beira da estrada. Debalde, outros se anteciparam, deixando apenas as rachadas:
– Toma cuidado, vê se não cais, homem – avisa-o quem bem lhe quer.
A viagem prossegue para outra igreja: São Martinho de Mouros, antigo mosteiro de clarissas e, mais, tarde, da casa de Marialva, que, por morte de Guiomar Coutinho, último titular, passou o padroado para a Universidade de Coimbra.
O aspecto do monumento é bizarro, mais parecendo uma fortaleza defensiva – contrafortes, cornijas e cachorrada – com torre de vigia central lá bem no alto. Entretém-se o visitante com a documentação de que se munira e fica curioso em ver a galilé interior que serve de pilar à torre sineira de que só lhe vira o cocuruto. “Experimente na casa paroquial. Pode ser que o senhor padre esteja por lá”, contestam-lhe à pergunta sobre quem teria a chave. Do cura nem a sombra. Não há mesmo outros habitantes em redor, nem para se confirmar se a terra é “de Mouros” porque ali habitaram sarracenos, ou se, como escreveu um antigo pároco, de ”altivos e grosseiros portugueses que se comportavam como bárbaros”. Pouco simpáticos serão, pois à tentativa do visitante adquirir cerejas pela estrada, respondeu o proprietário que estavam todas vendidas para o mercado. Todas?!, quais todas, se ainda estavam em processo de escolha que mãos delicadas faziam por dividir as boas das más? Que raio de diferença fariam dois ou três quilos a um produtor com dezenas de cabazes na camioneta? E nem se fale da diferença entre vender por grosso e a retalho.
O granito é o material de eleição da paroquial igreja de arquitectura religiosa, românica, gótica, maneirista e barroca. A fachada principal desenha-se em empena, com portal escavado em arco encimada por uma fresta. Um cruzeiro no adro, localizado a sudoeste do templo, propõe-se à fotografia. Aproveitem-se as memórias.
Resende surge ao caminho, e com ela, em cada rotunda ou canto, uns atraentes espantalhos vestidos com trapos multicoloridos pejados de cerejas em tecido. O mercado municipal revela a ganância dos supermercados: está vazio. Adia-se a compra das cerejas, outros lugares haverá, certamente. A avareza de quem explora as novas catedrais do consumo só tem paralelo na estupidez de quem, tendo responsabilidades políticas, não teve a visão do futuro. Duvida o viageiro que algum dia se façam as contas aos aspectos positivos e negativos de tal situação.
No turismo somos bem recebidos. Informamos ao que vamos e um dos presentes faz-se guia. Sabia do que falava – algo invulgar neste tipo de estruturas – e forneceu material de qualidade. Um senão a apontar-lhe: as repetidas alusões ao “eu fiz; eu estudei; eu desenhei” com que fazia acompanhar as descrições dos mapas. Excesso de vaidade ou visão egocêntrica do mundo. Ai, Jesus!
--Vá à ponte da Panchorra. Se quer ir almoçar à Gralheira, não tem como enganar, fica-lhe em caminho – recomendou o funcionário à despedida.
Acalentava o viajante enorme desejo de ir ao mosteiro de Santa Maria de Cárquere. Há muito tempo que lhe roía a ideia de ver o local onde uma das lendas de Afonso Henriques se forjou. Estava fechada, porém um homem não deve desistir por dá cá aquela palha. Circula em volta do magnífico templo de que pouco sabia e descobre uma extraordinária janela românica.
Olha, olha, mira através da fresta e descobre-lhe um gradeamento na face posterior. Tratava-se de uma capela, sala mortuária dos senhores de Resende, onde quatro túmulos, com o respectivo escudo de cabras, se aconchegam e prostram perante um rudimentar altar. Volte-se então ao mito, cuja importância lhe é concedida pelo desejo de independência do condado portucalense, já então partilhado pelos grandes senhores locais.
Reza a história que o pequeno Afonso nasceu defeituoso das pernas e que, por milagre, ali foi curado. Diga-se então que Egas Moniz terá sido alvo dum sonho ou duma aparição de Santa Maria, que lhe recomendou levar o petiz de cinco anos para um determinado local em Cárquere, onde encontraria as ruínas duma antiga igreja, bem como uma imagem da Senhora. De seguida deveria colocar o menino no altar e ficar uma noite de vigília O compromisso divino apontava à cura das enfermidades da criança, se a preceito procedessem os humanos. Por aqui fica a versão suave da história. Há uma outra, bem mais dura, do sucedido: vamos a ela. Esta, não recomendada a sensibilidades frágeis, conta que o aio do futuro rei achou que o corpo do menino deveria ficar rodeado de velas votivas ou tochas, espécie de ritual de homenagem a Santa Maria. Uma brisa, um ligeiro descuido, o cansaço duma noite de vela, poderão ser os responsáveis por um incêndio que se propagou à roupa e queimou mortalmente o menino. Tresloucado, Egas Moniz terá oferecido em troca o seu próprio filho – de idade semelhante à do então já cadáver – a D. Teresa, que, independência oblige, papel de mãe assumiria para toda a vida.
Lenda, mito, milagre, falta de provas, atracção do secreto, poderão forjar diversas teorias, todas capazes de fortalecer o arquétipo do que seria o reino. Do casamento do Aio com Dórdia Pais de Azevedo conhecem-se as actividades de dois dos filhos, Lourenço e Afonso Viegas, sendo que o primeiro seria sensivelmente da idade de Afonso Henriques. Terá o casal gerado mais três filhos, Mem, Rodrigo e Hermígio Viegas, que, provavelmente, morreram à nascença. Assentará nalgum destes a hipotética troca? E, sabendo-se que a primeira esposa faleceu em 1124, porque se alude ao segredo guardado pela condessa Teresa Afonso, se não era sequer a mãe da criança à data dos acontecimentos? E onde encaixa a dor da Dórdia Pais?
Em abono da verdade, Egas Moniz rapidamente ascendeu ao elevado cargo de “príncipe columbriense”, denominação que pertencera ao conde D. Henrique, e ao tratamento por “príncipe nosso”, título que era apanágio de governantes soberanos. Até o papa se lhe dirigiu para tratar questões do bispado de Lamego. Intrigante.
Menos incertezas se levantam à volta da igreja que hoje aparece aos nossos olhos. Originalmente românica, o seu corpo é manuelino, característica observável na porta lateral, nas duas janelas altas e nos modilhões da cornija. A capela-mor, que o visitante não viu, é gótica, tendo no lado esquerdo do arco cruzeiro a imagem da Senhora-a-Branca, origem dum ritual de fartura do leite materno. O contraponto é-lhe fornecido pelo envenenamento da água que as parturientes bebiam com pó de pedra.
Quando o viageiro decidiu partir, deu um último olhar no rude altar da capela funerária. Palpitou-lhe que foi ali e não na igreja que tudo se poderá ter passado... se é que se passou alguma coisa.
Meio-dia, tempo de enfrentar a serra de Montemuro. O trajecto vai demorar uns vinte minutos, tempo para usufruir da beleza serrana. É bonita a paisagem, vistas deslumbrantes a que falta a água lá em baixo, nos vales, conclusão enviezada de quem até ali tinha visto Douro por todo o lado. Não lhe faltam torres eólicas que, curiosamente, sob determinadas perspectivas, não ficam ali tão mal como as pintam.
A ponte da Panchorra surge quando já a Gralheira se divisa mais além. É o quarto monumento românico da zona de Resende. Situada em local idílico, unindo as duas margens do rio Cabrum, possui dois arcos de volta perfeita que lhe concedem o direito a estrela fotogénica. Diz-se que estamos a 1 200 metros de altura, e que terá feito inicialmente parte de um itinerário romano, e, mais tarde, de local privilegiado para a travessia de pessoas e gado na época medieval. Um sapo coaxa ou, calha, é um pato que grasna, que o viageiro tem dificuldades em os identificar se os não vê, escondidos que estão pelas moitas. São horas do almoço.
A aldeia da Gralheira tem um aspecto mórbido: o cemitério ocupa o pequeno largo principal da aldeia. A morte está presente à mesa do restaurante Recanto dos Carvalhos. A posta arouquesa mostrou-se de boa qualidade, sem convidar a voltar.
Estando alojado em Cidadelhe, tinha o viageiro previsto ir ver o respectivo castro. Que não fosse, disseram-lhe no hotel, que estava vedado e inacessível. Contudo, este homem é teimoso: foi. A primeira imagem desmente a informação prévia: o portão está aberto. Diz-se no respectivo folheto que as escavações arqueológicas, iniciadas entre 1983 e 85, foram retomadas em finais de 2013. Muito crescerão por aqui os arbustos para que o terreno não passe duma mata cerrada passado tão pouco tempo. O curioso busca em redor um caminho, terreno pisado que aceda algures, pois de castro, nem vê-lo. Descobre, atola-se em ervas e cardos que o picam nas pernas. Insiste, vislumbra o prémio quando se desvenda um muro numa curva do caminho. Mais não verá o viageiro, e, para saber o que não sabe, recorre a informação exterior e fica a conhecer as linhas de muralhas concêntricas e a existência ali duma torre já no tempo medieval.
O último jantar da viagem voltou a ter lugar na Tasca da Zequinha, e de novo o bacalhau a opção, então frito com cebolada. Bons lombos, bem cozinhados. Um comensal chamava a atenção por vir munido duma garrafa de vinho tinto à chegada ao restaurante. Percebe-se que é cliente habitual, não se entende que tal política seja positiva para o estabelecimento, e isso mesmo é transmitido pelas feições do proprietário. O viageiro entra inocentemente na disputa quando o homem lhe oferece uma prova. Em vez de um, passavam a ser dois os prejuízos para o estalajadeiro. Precavido, saliento que, embora tenha todo o gosto em beber o que me fora oferecido, não deixaria de pedir a bebida habitual. Ultrapassado o obstáculo, prosseguiu naturalmente a refeição.
(Continua)