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Das Viagens

Viajar devia de ser como o sonho: uma constante da vida. Aqui trago relatos apoiados numa visão muito pessoal do prazer de cirandar por aí.

Viajar devia de ser como o sonho: uma constante da vida. Aqui trago relatos apoiados numa visão muito pessoal do prazer de cirandar por aí.

Das Viagens

24
Mar17

DOURO MANSARRÃO - PARTE PRIMEIRA

Eduardo Gomes

Map of Portugal

 

Dada a lonjura a que Trás-os-Montes fica de Lisboa, o primeiro dia é consumido por uma longa viagem que só terminará em Cidadelhe, Mesão Frio. Almoça o viageiro já em terras transmontanas, que para tal se esforçou ao sair cedo da capital. Ao repasto ofereceu-se a Tasquinha do Zequinha. Comida honesta, bem feita, contudo sem primar pela qualidade da matéria-prima. A tarde é dedicada ao repouso, embora não impeça a visita à oficina de turismo local. À pergunta sobre o rescaldo local das invasões francesas, responde o funcionário que não sabe, mas que vai indagar junto de um amigo, o Carlos, professor de História:

– Sim, sim, durante a terceira invasão... – diz do outro lado do telefone o lente.

 

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O visitante não está com disposição para aturar a ignorância de quem faz do ensino vida:

– Diga-lhe que a saga do Loison se passou durante a primeira invasão, não na terceira – recomenda o forasteiro ao jovem funcionário.

Conversa acabada. Conceda-se ao professor tempo para fazer as revisões do programa. Promete voltar quem quer a informação. Pobres alunos entregues a professores destes.

O jantar ocorre no restaurante O Barracão, em Mesão Frio. O bacalhau é mal servido e de duvidosa qualidade. O comensal não desiste, é que lhe disseram ser o anho a especialidade da casa:

– É possível fazer anho assado para amanhã à noite?

Era.

– Faça-se! Cá voltarei!

 

Terça-feira.

Régua dum lado; Lamego do outro; Trás-os-Montes/Beira Alta à mercê das margens do Douro, muito mais disposto nesta zona a aceitar estradas no lado esquerda do que no direito. Se por terras beirãs nos envolvemos, aproveite-se o panorama da belíssima via que segue até ao Pinhão, seguramente uma das mais espectaculares de Portugal.

O rio é mansarrão, isto é, fizeram-no assim, domando-lhe o carácter selvagem com que a natureza o brindou. Deixou-se das bravatas de outrora, hoje não passa de um conjunto de lagos que se sucedem uns aos outros, convenientemente divididos por paredões que lhe deram o efeito escada até finalmente chegar à foz, ao nível do Atlântico. Pobre rio que ladras, mas não mordes.

 

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A seguir ao Pinhão, para onde o viageiro não precisa cruzar a ponte, tome-se a serra que o levará por São João da Pesqueira até Freixo de Numão, para depois iniciar, em regime de volta, as visitas pretendidas.

 

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A primeira paragem acontece no castelo velho, o que, por oposição, faz pensar na existência dum castelo novo. Trata-se de um antigo castro situado no cabeço da Fraga das Canas. A vista é magnífica, pois o local está a cerca de 700 metros de altura, distinguindo-se Foz Côa, a sul. Seguramente que este espaço não foi tomado de surpresa, tão amplas são as vistas. A primeira impressão é de abandono. Um suposto centro interpretativo foi construído no que parece um observatório-torre, em estado de degradação e tomado pela ferrugem. Apresentem-se as contas a quem tal disparate cometeu. Há um passadiço construído em madeira a circundar o alinhamento das muralhas do castro. Também ele apresenta sinais de decadência, melhor será cuidarmos onde pisamos. No centro do conjunto, percebe-se ter existido uma torre com cerca de 9 metros de diâmetro, provavelmente tardia, que aproveitou a pedra da região.

 

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A próxima visita envolve a vila romana do Prazo, nada fácil de detectar, sobretudo se levarmos em conta o que no Expresso se afirma. Perde o viageiro para cima de uma hora com as descabidas informações, até que, sem querer, já na estrada principal, dá com uma placa que indicia poder ser por ali. Para que não se acuse o escriba de só saber criticar, aqui fica a forma de ali chegar: EN 222 direcção oeste/leste, cerca de 100 metros antes de passar a Touça, ramal à esquerda. A casa agrícola romana construída na terceira centúria da nossa era, está bem representada, percebendo-se uma espécie de anfiteatro à entrada. Na parte mais alta, a zona termal, fornos de telha e de fundição de metais, sepulturas várias e, sobre a casa senhorial, o que poderá ter sido uma igreja paleocristã medieval. A estrutura é complementada com cabanas pré-históricas referentes aos períodos mesolítico e à idade do bronze, e ainda um menir, algo que mais se ajusta ao espaço do que à construção.

 

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O viajante levava preparadas alternativas várias para almoçar, o que não supusera fora estar tão atrasado. Consultado o plano de viagem, só a Petiscaria Preguiça se encontrava por perto, e mesmo essa, obrigava a dezena e meia de quilómetros por uma estrada sem saída que terminava aos pés do Douro. Peça-se o barbo frito e a sopa de peixe. De comer e chorar por mais, ainda que o estômago vá rezingar toda a tarde. A paisagem é de postal ilustrado. Dum lado, montanhas; do outro, a ponte, metade em silharia com arcos, metade em ferro.

 

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O comboio passa ali meia dúzia de vezes por dia. Acabado de chegar, o viageiro incauto perdeu a passagem das 13H30. Dez segundos antes e ficaria com uma fabulosa fotografia. Pena. Não repetiria a graça com o cruzeiro poucos minutos depois. “É mais lento, não escapa”, conforma-se quem não reagira anteriormente a tempo.

 

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O castelo novo está longe de o ser, pois a sua construção data do século XIII, atribuída a D. Dinis, já a pensar em terras de Riba-Côa. É magnífica a parte da cerca muralhada que se mantém de pé, cerca de 250 metros de perímetro em planta ovalada. Percebe-se que existiu uma urbe intra-muros, com ruas que se cruzavam em direcção a vários pontos cardeais: a este, a porta gótica de São Pedro; a sul a do Sol; ambas completadas por aberturas rasgadas a oeste e sudeste. As torres originais eram em número de 15, não tendo chegado aos nossos dias mais de três. Fora das muralhas, a leste, encontrava-se a capela de S. Pedro, da qual resistiram apenas três toscos muros. Na zona sul, intra-muros, situa-se o único portal que resta da igreja românica de Santa Maria. À volta do castelo observam-se múltiplas sepulturas cavadas nas rochas.

 

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A última paragem do dia aconteceria na estação de comboios do Vesúvio, onde se encontra a casa e propriedade de afamados vinhos, inicialmente pertença de D. Antónia Adelaide Ferreira. À habitual beleza paisagística junta-se a do edifício, ainda que a demonstrar indícios de grandes concentrações de humidade nas paredes. Duas marcas numa das paredes chamam a atenção do viageiro: 1979, a mais elevada; 1989, a seguinte. Reclamam o nível a que subiram as águas do Douro naqueles anos. Outros tempos, não é rio?

O jantar de terça-feira havia sido encomendado com a antecedência necessária, que isto de especialidades da casa só funciona ao fim-de-semana... e mesmo assim.... O anho assado estava bom, sem deslumbrar.

 

(Continua)

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