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Das Viagens

Viajar devia de ser como o sonho: uma constante da vida. Aqui trago relatos apoiados numa visão muito pessoal do prazer de cirandar por aí.

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Das Viagens

16
Abr17

ALCOA E BAÇA

Eduardo Gomes

Sábado, 8 de Abril de 2017.

 

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Um dia especial onde se cruzam comemorações várias. Algumas horas, poucas, ainda assim as suficientes para usufruirmos do dom da vida, não da mítica que nos deram, antes daquela que construímos e a que damos sentido.

Ir e vir no próprio dia, obriga a deslocação pensada. Alcobaça é o destino. Na mente, a certeza de que o tempo tem de ser bem gerido; na vontade, o desejo de parar nas Caldas da Rainha Leonor, mulher de D. João II, que, certamente, não esperaria tivesse tanto sucesso o mercado que se realiza umas poucas toesas acima do seu hospital termal.

Venceu a razão. O Mosteiro de Alcobaça, inicialmente gótico, aparece cada vez mais como elemento charneira da actividade comercial da cidade.

"Grande, maciço, saxónico na aparência e com seu tanto ou quanto de austero", assim foi classificado por um ilustre viajante estrangeiro há mais de duzentos anos. Hoje, por ali ciranda todo o tipo de gente, incluindo os sempre presentes asiáticos em busca de fotos.. de todo o lado... de todo o tipo.

Alguém se lembrou de construir um parque de estacionamento grátis a pouca distância, na zona a leste do monumento, o que facilita a vida de quem ali se desloca e calaceiro para andar não é. O centro histórico e a bolsa do visitante agradecem.

Antes de arribar ao destino, o viageiro fica suspenso por uma melodiosa voz que vem de local entre prédios, protegido por um arco. Acabada a récita do cantor, experimenta, quem tal dom não possui, a acústica: então não é que se podia confundir com Luciano Pavarotti ou Plácido Domingo? Estranho arco que, entre as praças da República e Afonso Henriques, tão grande milagre produz.

 

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Faz, neste dia, exactamente, 864 anos que o nosso primeiro rei firmou a carta de doacção do couto a Bernardo de Claraval.O viageiro posta-se, como já o fez muitas outras vezes, em frente ao mosteiro que, ao contrário da sua origem, é hoje bem pouco gótico. Dos primórdios restam-lhe a rosácea e o sublime portal da fachada; tudo o resto terá desaparecido por volta de 1531.O terreiro perdeu o verde de outrora, é hoje uma área fria e algo inóspita, não fora os carreiros de água com que o Alcoa celebra, como desde sempre o fez, a vida monasteiral.

Lá em cima, bem no alto, dois campanários barrocos e várias estátuas desafiam-nos a equacionar quando é que cistercienses aceitaram coisa tão pomposa. No transepto sul da igreja, encontra-se a porta dos mortos, assim chamada por ser aquela a última que cruzavam os monges antes de recolherem à morada definitiva ali bem em frente

 

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A igreja da Abadia de Santa Maria de Alcobaça é magnífica, tão sumptuosa quanto despojada de decoração ou imagens. A primeira impressão é espacial, tem-se  a ideia de que se caminha para cima, para o Céu, tal o realce do altar-mor. O visitante é automaticamente conduzido ao transepto onde se encontram, desde há algum tempo, face a face, os túmulos de Pedro e Inês. São magníficos e presunçosos, protestando iconografia ligada à História de Portugal e á Bíblia.

 

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Sarcófagos à parte, não percebo, nunca entendi, o mito que ao rei e à amante se associam. Há dezenas de casos semelhantes na História de Portugal. Investigue-se a fundo a questão, e encontraremos testemunhos do próprio Pedro que em tudo desmentem a versão oficial.

 

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E, já agora, como é possível que deixemos no eterno descanso no mosteiro de Sancti Spiritus de Toro a mulher mais vilipendiada de Portugal, e exultemos com uma galega que só trouxe problemas ao nosso país? 

 

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À volta do cruzeiro latino encontram-se nove capelas radiais que, globalmente, não clamam por atenções especiais. Contudo, a sacristia nova possui dois portais manuelinos, únicos por estas bandas, local policiado por uma imagem de Santo Isaías, sem que se entenda o porquê.

 

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No lado sul do transepto, junto da capela de S. Bernardo, encontram-se os túmulos dos Afonsos, II e III, a emoldurar uma cena da representação da morte do santo.

 

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Entre-se então na área de visita paga. A Sala dos Reis inspira nacionalismos mais ou menos pacóvios. Data do século XVIII, e, por tal, só possui as imagens dos monarcas até D. José. Seis pedestais permanecem vazios. Dirá o visitante que outros cinco ali faltam, pois, contando com o devaneio Miguel, e com os Pedro III e Fernando II, ambos reis consorte, são onze os titulares apeados. Quanto a Duarte, coitado, está sem cabeça. Logo ele que a tinha... e das boas.

 

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Numa das paredes, ao centro, impõe-se uma alegoria à coroação de Afonso Henriques pelo papa Alexandre III e S. Bernardo.

 

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É belo o claustro do Silêncio que envolve um conjunto de salões.

 

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Dentre aqueles destacam-se a Sala do Capítulo, espécie de parlamento do convento, local destinado a servir às reuniões onde temas importantes da comunidade se discutiam.

 

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A área dedicada à cozinha nova é, desde há muito, glosada pelos visitantes que se entretêm a calcular o número de reses que ali se podiam assar ao mesmo tempo, esquecendo a razão para a sua construção em detrimento da cozinha velha. Por ali estiveram, em tempos, os caldeirões com que se havia feito a comida no arreal de D. Juan I, em Aljubarrota. Apresentados dois séculos mais tarde a Filipe II, parece que o castelhano não lhes achou graça por aí além.

 

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O refeitório é alvo de imensas fotografias: pelo púlpito, onde um monge ia citando passagens bíblicas enquanto todos os outros se alimentavam; pela estreita porta, por onde, diz-se, passavam refeições aos pobre de fora do mosteiro. Abra-se aqui um parêntesis para afirmar que os monges tinham por hábito distribuir junto à portaria do mosteiro, aos pobres dos arredores, um pão de milho a que chamavam micha, ao qual acrescentavam a carne ou peixe que sobravam de cada refeição. Em cada quinta-feira santa, abriam a abadia aos mendigos, que, na ocasião, muito viam melhorada a sua ração diária.

E por falar em banquetes, reza a história que em 1794, a convite do cornudo regente João VI,  ali foi recebido com pompa e circunstância lorde William Beckford, romancista, crítico de arte, escritor de viagens e político. À porta, cerca de três centenas de monges, noviços e respectivos fâmulos o esperavam; na cozinha, uma panóplia de carne de veado, fruta, hortaliça e peixe de rio como nunca se vira. Horas mais tarde, e grande variedade de pratos exóticos que o inglês jamais cheirara em sua vida, lançaram-se as danças, minuetes ao som de clarinete e guitarra. Enfadonhos, assim os classificou Beckford, frustrado por não assistir a um bom fandango, bolero ou mesmo da libertina fofa, de quem se dizia confesso admirador. Quando foram servidos os doces e as frutas, diz quem viu, que o inglês, mandou sonoros beijinhos ao chefe da cozinha, um frade bem latagão.

 

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A subida até ao dormitório demonstra área generosa: cerca de 1300 metros quadrados. Diz-se que os monges se acomodavam por ali completamente vestidos, algo de que só admitiam prescindir quando precisavam de se deslocarem às latrinas no lado norte, altura em que exporiam o pirilau ao frio para resolverem necessidades biológicas.

 

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No lado oposto, isto é, a sul, há hoje uma vidraça que permite observar o transepto, a qual veio substituir as escadas que àquele conduziam quando os monges, marsápio na mão, se punham a imaginar cenas proibidas, e, por tal, precisassem de rapidamente chegar ao local de oração para exorcizarem tanta tentação da carne.

 

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Feita a escalada até ao dormitório, nada impede que se desfrute do clastro do Cardeal, a lembrar a figura grotesca e inquisidora do último Avis. Não há acesso àquele. O visitante que se fique pelas fotografias tiradas de cima.

O viageiro deixa em aberto outras descobertas. É que, inexplicavelmente, a abadia não possui casas de banho. À atenção  dos responsáveis pela unidade.

 

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Ia para lá do meio o dia, hora ideal para almoçar a quem deseja evitar os atropelos da uma da tarde. Em Alcobaça come-se no restaurante da pensão Corações Unidos, a antiga tasca José dos Corações, homem casado, nos primórdios do estabelecimento, com a afamada cozinheira Dª Joaquina Vieira. Conta-se que teve origem na arte do cozinheiro António de Sousa o famoso frango na púcara, que a tradição e este viageiro afirmam não haver melhor por muitas léguas em redor.

 

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O comensal vai ali, como já deixou subentender fazê-lo em relação a muitos outras catedrais gastronómicas, para um ror de anos. O serviço é atencioso e rápido. Se hoje nos pede 8 euros pela especialidade, há trinta e dois anos exigia 900 escudos, conforme reza a crónica do jornal A Capital, plasmada no quadro de honra do estabelecimento.

Já se não vêem por lá "os praças velhos" de antanho, substituídos por atenciosas moças. A Cândida chega-se à mesa e pergunta o que desejam "os jovens". Empertigo-me em dia de aniversário, brinco e elogio-a pelo bom humor. Responde que a juventude está na cabeça. Obrigado, querida.

 

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O plano da viagem previa a ida ao castelo, donde nos ameaçava uma extraordinária panorâmica sobre o mosteiro, da mesma forma que de cá de baixo já se haviam avistado as ruínas do que resta do monumento. Nada mais havendo a assinalar, fiquem as melhores fotos sobre a cidade.

-- Disseste que íamos a Cós. Sabes como lá chegar?

Mais ou menos, responde o viageiro, que recusa modernidades do tipo Global Positioning Systems, "gosta de pensar", diz, possuindo a noção geográfica do destino se situar para norte, algures para lá de Maiorga. Consulte-se a loja de artesanato situada junto ao mosteiro. Que sim, que até é de lá, responde uma velha, que de tão lenta nas explicações, exaspera um santo. Pega num pequeno pedaço de papel e começa lentamente a desenhar: estamos aqui, ponto; logo ali tem uma rotunda, novo ponto; a seguir cruza uma estrada que... Gaita, acabou-se a tira de papel; venha um novo pedaço, refaça-se o trajecto... Não tem GPS?, questiona o óbvio. Entram as netas da idosa, franzem a testa, sorriem ante a paciência da Tânia para lhes aturar a avó. Ufa! chega, já percebi. Adeusinho!

 

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Volta o viageiro ao carro que deixara estacionado pela manhã. Caminho fora, o Alcoa, bravio e forte e o belo palacete das Irmãs de São José de Cluny, dizem as más-línguas que construído com pedra roubada.

 

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A rua que ladeia o monumento pelo leste foi rebaixada, o que provoca situações caricatas, como aquela em que uma propriedade se encontra para venda. Posto que o acesso esteja dificultado por alto se encontrar o patim do edifício, a agência imobliária pede aos potenciais clientes que se munam de escada ou escadote se o querem visitar. Este viageiro, que em tempos não muito longínquos, possuíu uma agência imobiliária no Estoril, imagina o que diriam as cascaenses de nariz empertigado -- aparência burguesa, pelintrice na carteira -- ao serem colocadas perante tal requisito. 

 

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Cós, Coz ou Cóz serve-se à vontade do visitante pelas placas afora, numas assim, noutras assado. Deixemos, não discutamos.

O Mosteiro de Santa Maria de Coz -- náo é a minha versão preferida, antes a do folheto a que tive acesso -- não cativa à primeira vista, tal o estado das ruínas que surgem na beira da estrada. Este viageiro não se importa, quer-lhe saber a história, ou melhor, os factos, as discussões, as estórias. 

À chegada apresenta-se-lhe o Eurico Cavalho, cinquentão ou mais qualquer coisa, desempregado, responsável pelas visitas guiadas que proporciona sem custos. Aproveite-se, pois. A fundação do convento datará da primeira metade do século XIII, quando por ali terão aparecido merceeiras e lavadeiras ao serviço da abadia de Alcobaça. Viúvas devotas, partiram do princípio de que o hábito faz o monge, acabando por dar forma a uma comunidade de religiosas cistercienses, cuja função se relacionava com o apoio aos frades da abadia. Atribui-se a D. Fernando, abade de Alcobaça por aquela altura, a intercessão a favor da criação dum espaço para as mulheres.

Mais tarde, em 1530, o mosteiro de Santa Maria de Coz foi reconhecido pela Ordem de Cister e elevado a abadia regular. Rapidamente se transformaria num dos mais poderosos mosteiros femininos da ordem em Portugal. Diz-se que foram mulheres piedosas, fidalgas abastadas que para ali levaram dote e serviçais, as responsáveis pelo esplendor artístico barroco testemunhado pela riqueza da igreja.

Não vai o visitante deter-se em tudo o que viu. No exterior do monumento, para onde davam os dormitórios, salienta as imagens de S. Bento e S. Bernardo, este sem cabeça, arrancada a tiro, conforme demonstram os buracos em redor do nicho onde se encontra a estatueta. À questão sobre a torre, o homem acaba a confirmar que sim, que por possuir dois mirantes, serviria de vigia, e que, muito provavelmente, já existiria antes da construção do mosteiro.

 

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A igreja, erguida entre 1669 e 1671, único espaço preservado do antigo cenóbio, é magnífica, possui decoração barroca, e apresenta-se articulada com a capela-mor e o coro das monjas, do qual se separa visualmente por um grande arco totalmente preenchido por grade, e encimado por passadiço com balaustrada alta. Um senão: o frio que já se tinha notado em Alcobaça, apesar de estarem para cima de 25 graus lá fora; e a humidade que, aqui, parece consumir os ossos de um homem: pobres monjas.

 

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Tudo vasculha o visitante: o portal manuelino do coro, recolocado no extremo nascente conforme intervenção ocorrida entre 1519-27 da autoria de João de Castilho; o cadeiral  e o órgão setecentistas que ali estiveram e já não estão; os confessionários aos pares e com dupla face para leigos e monjas; os 80 caixotões de madeira pintados no tecto, datados de 1718 / 1720, restaurados há cerca de quarenta anos; a alusão aos frutos da terra na decoração das capelas; os quadros de Josefa de Óbidos; os painéis de azulejos por cima do cadeiral e na sacristia; os belos altares da igreja em talha dourada; a harmonia estética de muitos elementos se encontrarem aos pares.

No final a curiosidade do sistema de eleição da abadessa: favas brancas e negras. Quem recebesse as negras... ia à fava. As últimas monjas abandonaram o edifício em 1843, indo viver para Lisboa, diz o Eurico. Informação acessória recolhida pelo viageiro está em oposição com aquela, pois afirma terem sido as residentes dali desalojadas pela destruição causada pelo terramoto de 1755.

O mosteiro e o espaço ficaram sujeitos ao saque após a extinção das ordens religiosas, em 1834. Adquirido recentemente pela Câmara Municipal, tem na cobertura do tecto a preocupação imediata das autoridades, tal o estado de degradação do monumento.

 

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O dia aproxima-se do fim, tempo ainda para dar um pulinho à capela de Santa Rita. Leva o viageiro no bolso o relato na Memória do Padre João de São Paio de Freitas, datado de 20 de maio de 1758:

Tem mais esta Vila e Freguesia a Ermida do Bom Jesus do Calvário, sita defronte da mesma Vila e do Mosteiro dela para a parte do Norte, em um Monte tão alto e vistoso, que dele se descobre o Mar, e muitas légua de terra, para a parte do Sul, Nascente e Poente.

Olha em volta quem busca: nada mais para além de montes. Deficiência do viageiro, certamente.

De acordo com tradição múltiplas vezes repetida, a construção da capela é atribuída à teimosia duma cruz que, apesar de carreada por membro humano para o mosteiro situado 600 metros abaixo, logo tinha na mão de Deus o instrumento para àquele lugar voltar. Ali ficaria a cruz e a capela a atestar-lhe a teima.

Hora de voltar para casa. Para o ano há mais, se...

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